Dia III: o novo Mundial e a defesa de um futebol mais credível

Football Talks

Intervenções de Gianni Infantino e Pierluigi Collina em destaque no último dia de trabalhos.

AS MELHORES IMAGENS DO CONGRESSO

Dia I: inclusividade, identidade e inovação

Dia II: receitas, tecnologia e visões de futuro

As intervenções de Gianni Infantino, presidente da FIFA, e Pierluigi Collina, presidente do Comité de Árbitros daquele organismo, fecharam com chave de ouro o terceiro e último dia do “Football Talks”. Um dia em que o debate sobre a mudança de formato do Campeonato do Mundo, para 48 seleções, a partir de 2026, foi tema forte.

No encerramento dos trabalhos, Gianni Infantino começou por felicitar a FPF, na pessoa do seu presidente, Fernando Gomes, por todo o trabalho feito em prol do futebol. Depois, deteve-se a abordar um tema incontornável: o da recuperação da credibilidade por parte do dirigismo mundial, depois da crise que afetou a estrutura da FIFA e de várias confederações nos últimos anos. “Não é segredo que a FIFA passou pelos anos mais negros da sua história nos últimos anos” começou por assumir, antes de pormenorizar algumas das medidas de restruturação levadas a efeito no seu mandato: limites temporais para os mandatos dos cargos dirigentes, gestão das atividades comerciais assegurada por profissionais, concursos para a atribuição de direitos televisivos e comerciais, escrutínio assegurado por elementos independentes à organização e transparência na apresentação de contas foram alguns dos passos enumerados, que a FIFA tornou extensivos às várias federações nacionais e confederações.

“Nos nossos relatórios anuais não haverá linhas com outros custos no valor de vários milhões e a publicação dos salários do presidente e dos detentores de outros cargos será a dos salários reais”, prometeu, enfatizando a rutura com o passado recente. “A transparência no ciclo do dinheiro resolve 95% dos problemas de perceção pública da FIFA”, acrescentou, mostrando-se otimista quanto à contribuição dos novos presidentes das Confederações continentais, todos eleitos nos últimos dois anos. “Aumentámos o investimento, cada federação passou a receber 5 milhões de dólares num período de quatro anos, quando esse valor era de 1,6 milhões, com as mesmas receitas. Mas mais dinheiro significa também mais responsabilidades, cada federação assina um contrato onde explica como se compromete a aplicar o dinheiro no desenvolvimento do futebol”, concluiu.

Numa alocução com cerca de 40 minutos, Infantino abordou também os temas de responsabilidade social, definindo a inclusão, a diversidade e os direitos humanos como aspetos prioritários na gestão da FIFA, com foco na abertura dos cargos dirigentes ao setor feminino: “Não podemos continuar a deixar de lado 51% da população mundial”, resumiu.

Por fim, entrando especificamente nas questões do futebol jogado, Infantino prometeu tolerância zero para o match fixing e para a violência nos estádios, anunciando também a intenção de mexer no sistema de transferências, através do recém-criado Comité de Stakeholders, de que faz parte o presidente da FPF, Fernando Gomes. E justificou a aposta no vídeo-árbitro, que espera ver já aplicado no Mundial 2018, com um argumento simples: “Se não o testarmos, como vamos saber se tem ou não impacto positivo? Os resultados, até agora, mostram-nos que efetivamente ajuda o árbitro e traz mais justiça ao futebol”, afirmou, lembrando que na situação atual o árbitro é, muitas vezes, a única pessoa em todo o mundo a não ter consciência de que um erro grave acabou de ser cometido.

Mundial para 48: prós e contras

A parte final da intervenção de Gianni Infantino foi dedicada a defender o aumento da fase final do Campeonato do Mundo para 48 seleções, a partir de 2026. Uma medida que, diz, não é apenas decidida pela dimensão financeira, apesar de os estudos efetuados preverem um aumento de receitas na ordem dos 600 milhões de dólares. “Fazemo-lo pelo futebol, até porque o dinheiro a mais que gerar será reinvestido no seu desenvolvimento”, começou por garantir.

Lembrando que o aumento de participantes em fases finais foi uma constante nos últimos 40 anos, o presidente da FIFA justificou: “Em 1966 havia 16 finalistas e 70 federações inscritas. Mas o mundo está em mudança e agora são 211. Não há ferramenta maior para o desenvolvimento do futebol do que a participação de seleções em grandes eventos, sejam Mundiais, Europeus, ou Taças da África. É a febre do futebol gerada pelos apuramentos que levar a mais países. As qualificações mudam o quadro mental dos países médios no que diz respeito ao futebol”, resumiu.

Ao mesmo tempo, Infantino desvalorizou a possibilidade de criar sobrecarga nos calendários internacionais, com impacto na saúde dos jogadores: “De acordo com o modelo estudado, o Mundial continuará a ser feito em 32 dias, o vencedor continuará a fazer sete jogos, e 32 equipas farão um mínimo de três jogos, tudo como já acontece agora”, concluiu, afirmando que para a FIFA a mudança não terá efeitos negativos, a não ser, eventualmente, os problemas competitivos de uma fase de grupos com apenas três equipas.

No mesmo sentido, pouco antes, tinha decorrido a intervenção do jornalista Gabriele Marcotti, da ESPN, que considerou o novo formato como um fator benéfico de promoção do jogo em mais países: “Haverá mais dinheiro para redistribuir melhor, reforçando os contactos e experiência internacional de mais federações e o aparecimento de patrocinadores locais”, antecipou, considerando que as vantagens ultrapassam em larga medida inconvenientes como as questões logísticas ou uma eventual diminuição na qualidade média dos jogos.

Arbitragem: como melhorar o fator humano?

Antes do presidente da FIFA, já Pierluigi Collina, presidente do comité de árbitros da FIFA, tinha cativado o auditório do Centro de Congressos do Estoril com a sua defesa da componente humana da arbitragem, em complemento à intervenção da véspera, de David Elleray, sobre o recurso ao vídeo-árbitro.

Considerando que devem ser deixados para recursos tecnológicos aqueles lances onde a margem de apreciação sobre a posição da bola ou o local da falta são de um ou dois centímetros, Collina centrou o fator humano da arbitragem em três pilares de intervenção: condição física, conhecimento das leis e conhecimento do jogo.

No primeiro ponto, sustentou a ideia de que o objetivo primordial do treino físico é evitar os erros motivados pelo cansaço, que têm tendência a surgir no final dos jogos: “É preciso ajudar a manter a lucidez nas decisões, tal como um jogador comete mais erros quando está cansado. Além disso, é importante a imagem: aceita-se mais facilmente um erro de um árbitro com boa aparência física do que se valoriza uma boa decisão de um árbitro com má condição”, revelou. Para sustentar este ponto, Collina revelou um dado interessante: em 2012, apenas 28,9% dos árbitros de elite tinham níveis de massa gorda compatíveis com o perfil de um atleta. Em apenas quatro anos, esse valor subiu para 83,6%, apenas com a afinação dos planos de treino.

A introdução de uma plataforma digital que agiliza a troca de informações com os árbitros e a discussão sobre questões e lances polémicos foi outra medida que, no entender de Collina, tem contribuído para a melhoria global das arbitragens. Mas o ex-juiz italiano enfatizou um outro ponto que, em sua opinião, esteve na base do alto nível das arbitragens no Euro 2016: “Um árbitro tem de ter conhecimento acerca do seu jogo, deve saber como jogam as equipas que vai dirigir, como marcam nas bolas paradas, se jogam futebol direto ou apoiado, se marcam à zona ou individualmente, porque todos esses fatores vão influenciar o seu foco de atenção”. Por isso, desde o ano passado tornou-se prática corrente nas principais competições da UEFA o recurso a um staff de técnicos e analistas que, na véspera do jogo, informam as equipas de arbitragem acerca das principais características dos intervenientes na partida. “O árbitro deve evitar ser surpreendido, porque muitas vezes a surpresa é sinónimo de má decisão”, lembrou Collina.

A terminar a sua intervenção o italiano deixou um dado para reflexão, relativo à taxa de acerto dos árbitros assistentes nas decisões de offside nas últimas três edições da Liga dos Campeões: “Tanto nas fases de grupos como nos jogos a eliminar, esse valor é sempre superior a 94%”, frisou, antes de, a título de comparação, deixar a eficácia de passe dos melhores médios da Europa: Toni Kroos tem 92%, Thiago Alcântara 90% e Xabi Alonso 89%. “Espero que este número vos ajude a olhar para os árbitros de outra forma”, concluiu.

O que fazer para lidar com o match fixing

Ao início da manhã, Jens Bangsbo, professor de fisiologia do exercício na Universidade de Copenhaga, tinha animado os trabalhos com uma apresentação dinâmica sobre as virtudes do treino físico individualizado. Lembrando que as diferentes posições em campo obrigam a diferentes tipos de esforço, e que mesmo dentro de posições idênticas e da mesma equipa há jogadores de perfis muito distintos (Bangsbo deu o exemplo de Puyol e Dani Alves como laterais direitos no Barcelona) o dinamarquês, que integra a equipa técnica da seleção do seu país, fez a defesa de planos de treino individualizados e focados nas ações específicas de jogo, fundindo os aspetos motivacionais, físicos, táticos e técnicos.

Logo de seguida, abordou-se um tema mais preocupante. Andreas Krannich, director-executivo da Sportradar, empresa que trabalha com a FIFA na monitorização do match fixing, traçou um quadro sobre o funcionamento das organizações paralelas de apostas, em grande parte (75%) provenientes da Ásia, onde a desregulação de mercados e a cultura de jogo levou à proliferação de redes clandestinas que movimentam entre 100 a 200 mil milhões de euros por ano.

“As casas de apostas são parte da solução, não do problema. Porque o match fixing cria três vítimas: o adepto, que é enganado por um resultado viciado, o desporto, que perde a sua integridade, e a casa de apostas, que é obrigada a pagar”, lembrou este perito, que apontou a falta de coordenação na legislação internacional sobre este tema como um dos principais obstáculos a superar.

Segundo Krannich, os agentes desportivos diretamente envolvidos em casos de fraude raramente são o centro da rede, mas apenas intermediários num esquema mais complexo e que envolve organizações criminosas com ligações ao tráfico humano e de armas. E, lembrou, muitas vezes as autoridades, políticas e policiais, bem como os sistemas bancários, acabam por associar-se ao processo: “Mesmo que não estejam envolvidos no esquema, aceitam a liquidez que este gera”, apontou.

A falta de recursos para investigação, a existência de diversos “buracos legais” e uma legislação internacional que comparou a “uma manta de retalhos”, bem como a margem limitada de intervenção das autoridades desportivas são alguns dos problemas identificados. A solução, segundo Krannich, passa pelo recurso a uma educação efetiva, que faça a prevenção junto dos jovens atletas, mais suscetíveis de serem envolvidos no processo, até pela massificação dos hábitos de apostas online. A monitorização dos padrões de apostas e o recurso a especialistas na recolha de informações podem ajudar a combater uma ameaça crescente à integridade do desporto. Afinal, como lembrou Krannich, “a corrupção tem raízes profundas na nossa sociedade, que vão para fora do universo do desporto”.


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