“A vergonha é um trunfo que, bem jogado, pode ser um factor para a mudança”, afirmou Rui Vitória.
É uma das grandes questões da atualidade no futebol português: o tempo útil das partidas da Liga é um dos piores da Europa, facto que é preciso alterar. Para bem do espectador e do próprio produto, que necessita de se tornar mais atrativo e vendável, sem as constantes interrupções provocadas por faltas e faltinhas, quezílias várias e perdas de tempo evitáveis. Para discutir este tópico, estiveram esta terça-feira no Football Talks, João Marcelino (diretor-executivo de conteúdos da FPF), o árbitro internacional Luís Godinho, o técnico Rui Vitória (atual selecionador do Egipto, por videoconferência) e o ex-jogador Tarantini, futebolista recém-doutorado que agora faz parte da equipa técnica do FC Famalicão.
Num “tema que não é fácil”, como começou salientar o moderador Miguel Prates, o primeiro a entrar em ação foi o selecionador dos faraós, que começou por falar da sua experiência em diferentes lugares do mundo. “É um tema que me interessa e o que tenho visto é que as coisas diferem de país para país. Aqui em África há uma cultura em que as coisas andam a seu bel-prazer e é aceite. Em Portugal, há uma mudança naquilo que se quer para o futuro. Isto tem a ver com a tolerância que temos com o assunto. Se houver regras claras, isto gradualmente vai mudando. Tudo aquilo que toleramos vamos deixando que aconteça”, disse, antes de confessar que também já perdeu tempo nos últimos minutos de um jogo: “Fazemos porque sabemos que tem impacto no adversário.”
E esse lado estratégico foi realçado por João Marcelino. “O ranking mostra que no sul da Europa se joga menos do que no norte. No futebol, o tempo tem um valor estratégico que não tem em mais nenhuma modalidade. Nalgumas altura até gosto disso, o futebol é onde os menos fortes ganham mais vezes aos mais fortes. No final da linha, até seria a favor do tempo cronometrado mas, por outro lado, gosto desta beleza estratégica”. “Os treinadores são avaliados pelos resultados, nunca vi nenhum adepto sair angustiado porque a sua equipa ganhou”, acrescentou, fazendo notar que apesar disso “é importante melhorar isto”.
Na sua condição de árbitro, Luís Godinho admitiu que os juízes têm “um guião, que nos foi dado há algum tempo”, para lidar com o tempo desperdiçado e calcular a duração do tempo adicional: “Assistência, um minuto em média. Na substituição, o tempo passou de 30 para 45 segundos. Itens adicionais, como a pausa para hidratação, têm de ser compensados na íntegra, tal como em caso de intervenção do VAR. Isto é um instrumento mas o resultado também manda, Se houver um 5-0 é preciso usar bom senso, ninguém vai querer mais 10 minutos de jogo”. “São indicações para termos um compromisso com este item do tempo de jogo. Há uma instrução para que o mesmo seja mais fluído, não marcar tantas pequenas faltas. Mas, do outro lado, tem de haver aceitação desse critério”, assinalou, dando o exemplo prático do dérbi de Salónica que apitou no último fim de semana, onde ninguém queria um jogo rápido: “É faltas que querem, é faltas que marcamos”.
Rui Vitória salientou ainda o impacto de se jogar mais minutos. “Mais tempo não quer dizer mais qualidade. O tempo útil vai levar-nos para mais intensidade e para o controlo emocional e nós queremos o jogador sempre focado”, afirmou, dando a sua receita para ajudar a resolver o problema: “Numa reunião na UEFA, foi divulgado um relatório mostrava que um jogo de Champions tinha mais 14 minutos de tempo útil do uma partida da nossa Liga. É uma vergonha mas essa vergonha é um trunfo que, bem jogado, pode ser um factor para a mudança. Expôr mais quem tiver este tipo de comportamentos.”
Dirigir um jogo como na Premier League será parte da solução? Luís Godinho diz que também gosta “de arbitrar à inglesa” mas ressalta: “Isto é uma questão cultural. O mesmo interveniente muda-se para Inglaterra e joga à inglesa. A mentalidade muda. As pessoas adaptam-se à competição onde estão.”
Sobre responsabilidades, Tarantini divide-as por todos os intervenientes e cita um estudo de uma universidade portuguesa, que analisou 612 jogos e mostrou as situações em que o tempo mais de perde: “Nos jogos com mais número de cantos e golos, no estilo de jogo das equipas, no número de sanções disciplinares nos últimos 30 minutos. Curiosamente, as substituições não têm qualquer relação com o tempo útil”.
A regra dos seis segundos para o guarda-redes também foi abordada, com Luís Godinho a responder com humor: “Quem não se lembra do cartão amarelo ao guarda-redes aos 85, 86 minutos? Este ano, tem sido mais cedo, às vezes até na primeira parte. Queremos que a mensagem também passe para o banco, de que estamos a ter perceção do que está a passar em campo. Já disse à minha equipa que vou um dia vou ser o primeiro maluco a aplicar os seis segundos!”
No entanto, esta é uma questão que tem dois lados. Quem está dentro do campo, dependente de um resultado para poder continuar a trabalhar, pode não ter o espectáculo como grande preocupação. “Quando a pressão aperta, por mais que sejamos líricos, a questão dos resultados tem muita importância. O treinador vai ter de perceber que tentar ganhar tempo não o vai levar mais facilmente à vitória. Vai perceber que não vai querer parar o jogo no tempo extra, porque isso vai aumentar o tempo final. E, para se evoluir, vamos ter de dar passos neste sentido”, assinala Rui Vitória, enquanto Tarantini admitiu a rir que se a sua equipa estivesse a ganhar não pensava no assunto: “Enquanto jogadores percebemos nos últimos tempos a importância da qualidade de jogo. É que fora das quatro linhas é quase uma parte romântica, mas lá dentro é muito diferente.”
“Esta questão não pode ser separada de muitas outras coisas”, prossegue João Marcelino. “Há a questão financeira e orçamental. É necessário caminhar para uma melhor distribuição das receitas, tentar equilibrar as condições de competição, tudo isso vai refletir-se no tempo útil. Depois, lá dentro é outra coisa, naqueles 90 minutos estas questões não passam por lá.”
Rui Vitória junta uma proposta de solução: "O que temos de fazer é com que nos 90 minutos se perca menos tempo. É um passo para compensar esses oito ou dez minutos, porque isso também vai ter impacto na parte fisiológica. Temos de arranjar maneira de o jogo ser fluído. Quantos golos não acontecem depois de uma paragem, de um lançamento, uma substituição ou após o intervalo? Isto no cérebro do jogador tem um grande impacto. Quanto menos paragens houver, mais o jogador está ligado à corrente.”
“O critério depende da personalidade do árbitro, do jogo, do tipo de jogo e da própria estratégia do árbitro. Está tudo interligado. Uma melhor qualidade de jogo traz uma maior qualidade à arbitragem”, acrescentou Luís Godinho.
Mas a verdade é que, no fundo, “o futebol tem na gestão do tempo um factor estratégico”, como reforçou João Marcelino: “Se quiserem entrar noutro domínio, só há uma solução, que é ligar o cronómetro.”
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