Três palavras-chave no arranque dos trabalhos da terceira edição do Football Talks, no Estoril.
Com o primeiro-ministro António Costa a atribuir ao presidente da FPF, Fernando Gomes, o Colar de Honra ao Mérito Desportivo - fazendo assim a ponte entre um inesquecível ano de 2016 e um futuro imediato em que o futebol assume “grande responsabilidade na formação de melhores cidadãos” - o Football Talks 2017 arrancou no Estoril sob o signo de três conceitos-chave: inclusividade, identidade e evolução.
Da primeira destas palavras fizeram eco vários oradores, a começar pelo presidente da UEFA. Numa intervenção destinada a expor o racional das mudanças necessárias para o quadriénio 2018-2021, Aleksander Ceferin sublinhou uma obrigação para o organismo a que preside: a de não olhar apenas para as competições de elite esquecendo o resto, como a formação, os clubes locais e, particularmente, o futebol feminino. “Como guardiã do jogo, a UEFA deve ajudar a quebrar barreiras, combatendo por exemplo a falta de oportunidades que em alguns locais as raparigas têm para praticar futebol”, lembrou, deixando ao mesmo tempo uma convicção: “Se os recursos gerados pelas grandes competições não servirem para um desenvolvimento sustentado e inclusivo há um risco de falhanço do mercado. Focando demasiado no produto de elite estaremos a derrotar-nos a nós mesmos”, alertou.
Pouco depois, a intervenção de António Costa na sessão de abertura foi no mesmo sentido quando, ao enumerar as conquistas desportivas em 2016, lembrou que «tão ou mais importante» do que a vitória no Euro tinha sido a qualificação da seleção feminina para o Campeonato da Europa.
O mesmo conceito de inclusividade foi também abordado, de outra forma, na exposição conjunta de Nuno Teles, CMO da Heineken nos Estados Unidos, e Gary Stevenson, presidente da MLS, explicando os passos dados para a criação de uma marca forte associada ao futebol na realidade norte-americana. O slogan ”open your world” foi dirigido a um público específico de millenials, jovens abertos a diferentes influências culturais, raízes linguísticas e preferências sexuais. Um exemplo prático foi dado em vídeo, ilustrando como o primeiro jogo do Orlando City SC para a MLS, depois do atentado de junho passado à discoteca Pulse, que causou 49 vítimas mortais, se transformou numa manifestação de apoio à comunidade LGBT da cidade, promovendo a sua integração no universo do futebol.
Mais à frente, o canadiano Victor Montagliani, presidente da CONCACAF, voltou ao tema lembrando o sucesso de organização que foi o Mundial feminino de 2015, organizado no seu país: «O futebol pode ser uma lição para o resto da sociedade, a equidade é importante em todos os aspetos da vida. Há áreas do mundo em que a importância do futebol já transcende a questão de género e temos de aprender com elas», reconheceu. Na sua participação, Montagliani recordou também que o crescimento do futebol no mercado norte-americano e da América Central não passará apenas por questões futebolísticas, mas também comerciais: «Em alguns países da nossa confederação a violência ainda é um problema. Mas se os jogos forem vistos em família, com mulheres e crianças, num ambiente favorável ao consumo, a violência diminui, sem se perder a ideia de festa», resumiu.
Também Geir Thorsteinsson, presidente honorário da federação islandesa, sublinhou a importância dessa visão de conjunto lembrando, com indisfarçável orgulho, que o seu pais, com uma população de apenas 340 mil habitantes, é um dos oito, em todo o mundo, que em janeiro deste ano integravam o top-20 do ranking da FIFA tanto em seleções masculinas como em femininas. A impressionante taxa de praticantes federados (23 mil, quase 7% da população) engloba um número muito relevante de mulheres (um terço do total) e assenta numa política que faz da igualdade de género uma prioridade – por exemplo, negociando patrocínios idênticos para as competições masculinas e femininas.
Esta visão integradora do futebol foi, ainda, sintetizada por Alejandro Dominguez, presidente da confederação sul-americana de futebol, ao deter-se na importância de todas as variantes de futebol – feminino, futsal, futebol de praia – na afirmação de identidade de uma “nova CONMEBOL” que, na ressaca dos escândalos da gestão anterior, se afirma como promotora de um futebol “integrador e sem barreiras”, mesmo em países onde a tradição não ia nesse sentido.
Leonardo Jardim: «O treinador português consegue adaptar-se e apresentar resultados»
Um dos oradores mais aguardados do dia era, naturalmente, Leonardo Jardim que, em diálogo com o apresentador Carlos Daniel, abordou a identidade do técnico português, presentemente muito valorizado no panorama internacional: «É muito bem visto na Europa e no Mundo, porque, tal como os nossos emigrantes, consegue adaptar-se a cenários de muita dificuldade e apresentar resultados. No geral, tem conhecimento, tem capacidade de falar sobre futebol, sobre medicina desportiva e sobre gestão», sublinhou.
O técnico do Mónaco referiu-se também ao desfazer da imagem que se lhe tinha colado, de treinador defensivo e pouco espetacular: «Sempre entendi que tinha de adaptar-me e ser realista em função daquilo que tinha. Se vou treinar o Sporting, que vem de um 7.º lugar, tenho de montar a equipa para ter resultados rapidamente, os adeptos não estão à espera de espetáculo. Se estou no Mónaco, ao fim de três anos a consolidar processos, e com reforços, já podemos tentar conciliar as duas coisas», resumiu, explicando a veia goleadora da sua equipa na época em curso.
Identidade foi, também, o tema central da exposição de Silvio Vigato, co-diretor de receita da Juventus, que analisou em pormenor a mudança radical no logótipo do clube italiano. Um processo que vai além da simples modernização visual, explicou: «Foi um movimento disruptivo, o que nem sempre é bem acolhido. Mas a necessidade de aumentar a receita levou-nos a este passo, que corresponde a um repensar da marca», assumiu.
O conflito entre tradição e inovação, entre história e modernidade teve de ser assumido pelos responsáveis do clube italiano, que para acompanhar o crescimento da concorrência internacional, teve de virar-se para o mercado externo. «Tínhamos de crescer internacionalmente, tornando-nos uma marca global. Mais do que um clube, uma empresa virada para o entretenimento desportivo, capaz de interessar a millenials, crianças e mulheres, que nem seriam particularmente entusiastas do futebol. A imagem e o anterior logo estavam demasiado ancorados no passado para que isso fosse possível», assumiu Vigato.
O seu raciocínio foi ancorado nos dados apresentados por Paul Rawnsley, diretor da Deloitte Sports Business Group, que sublinhou a tendência para os nomes dos dez primeiros clubes que geram maiores receitas se manterem inalterados há vários anos no estudo financeiro anual que a sua companhia elabora. “A tendência é para crescerem mais (12%) do que a média dos clubes nas cinco principais Ligas (9%)”, afirmou, lembrando ainda a crescente influência dos players asiáticos (a China ou os países árabes) no panorama dos principais clubes europeus: “Seis dos dez primeiros têm donos estrangeiros, e cinco deles têm um patrocinador principal dos países do Golfo”.
Rawnsley reconheceu que, em paralelo com o aparecimento de investimento forte nos países do Golfo e na Liga chinesa, este fenómeno – associado à globalização e à venda internacional dos direitos televisivos - está a mudar a identidade dos maiores clubes e lembrou que mesmo entre esta elite, o fosso entre a Premier League e a Ligue 1 tem vindo a aumentar. Ainda assim, respondendo a uma pergunta da assistência, Ranwnsley mostrou-se cético quanto à possibilidade de, num futuro próximo, haver um movimento tendente à criação de uma Superliga europeia: «A Champions League, no modelo atual, já é uma espécie de Superliga e a UEFA tem-se esforçado para redistribuir as receitas de forma mais equilibrada», lembrou.
«As crises são desafios, os desafios são oportunidades»
O terceiro tema forte deste dia, a inovação, foi introduzido pela intervenção de Florence Hardouin. Lembrando os incidentes ocorridos no Mundial 2010, que geraram uma péssima imagem para a seleção francesa e um início de debandada dos seus patrocinadores habituais, a diretora geral da Federação Francesa de Futebol retomou uma ideia muito repetida pelos oradores ao longo desta primeira sessão: a de que uma crise é um desafio, e um desafio é uma oportunidade para mudar e melhorar.
Foi o que fez a FFF depois de 2010, explicou: “Uma decisão fundamental foi termos deixado a agência com que trabalhávamos, passando a assumir a estratégia de marketing e a negociação de direitos nas nossas mãos”, contou. O alinhamento estratégico conseguido passou pela redução do número de sponsors – de 30 para 12, garantindo-lhes maior visibilidade e impacto – pela internacionalização e pelo aumento da atividade comercial, que é a principal fonte de receita de uma estrutura federativa que gera 220 milhões de euros de volume de negócios e tem 10 milhões de seguidores nas redes sociais.
Inovação na organização das estruturas do futebol foi, também, mote comum às intervenções dos três presidentes das confederações continentais, Aleksander Ceferin, Victor Montagliani e Alejandro Dominguez, que assumiram a necessidade de novas práticas e novos estatutos, na ressaca da crise de credibilidade que afetou o dirigismo mundial do futebol nos últimos anos, e de inovar para combater inimigos bem identificados: corrupção, match-fixing, violência e dopagem.
A inovação científica, essa, foi introduzida pelo alemão Wolfgang Schöllhorn, diretor do Instituto de Desportos da Universidade Mainz, cuja comunicação, acerca de aprendizagem diferencial, referiu dados que, desde 2000, têm vindo a ser aproveitados em La Masía, na formação do Barcelona, e desde 2009 por Thomas Tuchel, atual treinador do Borussia Dortmund. O princípio, básico, é o de que, a exemplo do que sucede com as crianças de dois anos ou menos, a aprendizagem é potenciada, não pela repetição de gestos – como no treino clássico – mas pela adaptação dos gestos a novas realidades e dificuldades imprevistas.
Assim, obrigar os jogadores a introduzirem mudanças nos gestos técnicos – como remate ou passe, mudando a posição do pé de poio, ou dos braços, acelera a sua evolução: “Criar instabilidade ajuda-nos a aprender, necessitando de menos energia. A repetição adormece o cérebro. A mudança melhora a aprendizagem. E os resultados traduzem-se numa aprendizagem melhor e mais sustentada no tempo”, garantiu, com estatísticas a validarem as conclusões do estudo.
Na mesma linha de raciocínio, a intervenção de Steve Fox, diretor-geral de engenharia da Microsoft, sublinhou o papel cada vez mais determinante que a tecnologia de recolha, análise e apresentação de dados científicos desempenha nas relações entre jogadores, equipas técnicas e departamento médico. Assumindo o objetivo de tornar a pesquisa e cruzamento de dados como um fator cada vez mais preponderante na tomada de decisões, Fox lembrou as potencialidades deste tipo de trabalho na previsão e prevenção de lesões, e na adaptação das cargas de trabalho a cada jogador.
Por fim, e num contexto em que todos os oradores mostraram considerar a inovação tecnológica como um aliado importante para o futuro do futebol – Aleksander Ceferin considerou mesmo ser “urgente considerar os produtos de Silicon Valley como amigos, visto que já são amigos das nossas crianças” - a intervenção do brasileiro Wendell Lira teve algo de simbólico. O antigo avançado do Goiás narrou na primeira pessoa a passagem do futebol “real”, que praticou profissionalmente durante nove anos, e o futebol “virtual”, que lhe permitiu, depois de ter ganho o prémio Puskas em 2015, deixar para trás das costas as sucessivas lesões e deceções profissionais. É como videogamer de elite, com canal no Youtube, que Lira reencontra agora a felicidade que o futebol lhe tinha dado, aliada um sentimento de estabilidade e realização que até aí sempre lhe escapara. É a família do futebol em versão mais alargada e inclusiva do que nunca.