O segundo dia de congresso visto à lupa
No segundo dia do Football Talks dois temas incontornáveis da atualidade mediática estiveram em destaque. O primeiro, as alterações aos critérios de distribuição de vagas e receitas das competições europeias, esteve a cargo de Giorgio Marchetti, secretário-geral adjunto da UEFA. O segundo, o impacto do recurso à tecnologia como auxiliar das equipas de arbitragem, foi abordado por David Elleray, diretor técnico do International Board.
Numa das intervenções mais aguardadas do dia, Giorgio Marchetti saiu em defesa das alterações promovidas pela UEFA em agosto e dezembro do ano passado, sustentando que o facto de, a partir de 2018, metade das vagas na fase de grupos da Liga dos Campeões (16 em 32) pertencer aos quatro primeiros países do ranking não significa necessariamente um acentuar das desigualdades entre a elite e a classe média do futebol de clubes. “A mudança tornou-se necessária face aos sinais de declínio de competitividade na fase de grupos e ao risco de impacto negativo no interesse mediático. Em paralelo, haverá um crescimento da representatividade da Liga Europa”, explicou, recusando a ideia de que foi a pressão dos grandes clubes a determinar o sentido das alterações que vão vigorar até 2021.
Assumindo a delicadeza de equilibrar o estatuto de melhor competição de elite com o de uma prova aberta a todas as associações e “fator de unidade e estabilidade no futebol europeu”, Marchetti chamou a atenção para o facto de o menor peso do market pool na distribuição das receitas, em favor do desempenho individual de cada clube, beneficiar os clubes médios com boas carreiras europeias – Benfica e FC Porto foram exemplos apontados na demonstração – e penalizar os clubes de países de topo com maus desempenhos.
O aumento de pagamentos de solidariedade para as Ligas fora do top-5 (58% da verba total) foi outro fator de ponderação introduzido nas alterações para o próximo quadriénio. As desigualdades entre o topo e a base da pirâmide existem, admitiu o secretário-geral adjunto da UEFA, mas não são determinadas pelo organismo: “As verbas atribuídas pelas provas de clubes da UEFA são apenas 9% do total em circulação nos clubes europeus. E 86% do dinheiro gerado no futebol europeu e pelos clubes das Ligas top-5, que recebem apenas 60% das receitas da UEFA. As receitas da UEFA têm uma distribuição mais equilibrada do que as comerciais, de bilheteira ou de direitos de TV. O desequilíbrio é um problema global”, concluiu.
«A mudança mais significativa na história do futebol»
Pelo menos tão aguardada era a intervenção de David Elleray, director técnico do International Board, que no início da sessão da tarde fez o ponto de situação sobre o recurso às novas tecnologias no auxílio às equipas de arbitragem. Com vários exemplos concretos, alguns retirados de jogos na Holanda e nos Estados Unidos, onde o vídeo-árbitro (VAR) já funcionou em regime de testes – Portugal também integra a lista de países onde esses testes estão a ser aplicados - a apresentação de Elleray vincou uma ideia forte: “Interferência mínima para benefício máximo”.
“O recurso ao VAR só é contemplado para três categorias de eventos que possam mudar o decurso de um jogo - golos, penáltis e expulsões - e ainda uma quarta, a identificação errada de um jogador. O árbitro continua a assumir todas as decisões, e só ele pode optar por pedir a revisão vídeo – os assistentes podem apenas sugeri-la”, explicou, acrescentando que não será replicado o modelo do ténis, onde jogadores – ou técnicos – podem solicitar challenges à decisão do juiz.
Com um árbitro ou ex-árbitro como assistente de VAR, com acesso a todos os feeds de imagem em tempo real e controlo das repetições, o árbitro pode ser informado no imediato de um erro grosseiro e optar pelo recurso às imagens, sinalizando-o de imediato para jogadores e público à primeira possibilidade. Com aplicação no Mundial sub-20, na Taça das Confederações e no próximo Mundial de Clubes, o recurso ao VAR poderá ser aprovado já para o Mundial-2018, caso haja feedback positivo das experiências em curso.
Essa é, nesta altura, mais do que uma forte probabilidade, admitiu o antigo árbitro internacional, que não teve dúvidas em enumerar as virtudes deste recurso no combate à simulação, à violência e à manipulação de resultados: “É, potencialmente, a mudança mais significativa na história do futebol”, concluiu.
Dois campeões do Mundo no Estoril
Se as visões acerca do futuro do futebol dominaram grande parte das intervenções nestes primeiros dois dias, é indiscutível que a atração do passado continua a ser determinante na forma como nos relacionamos com este desporto. E, se houvesse dúvidas a esse respeito, bastaria ver o burburinho gerado no Centro de Congressos com a presença de dois craques brasileiros, campeões do Mundo em 1994 e 2002, que povoaram o imaginário coletivo de várias gerações de adeptos.
O primeiro a subir ao palco, Raí Oliveira, abordou a responsabilidade social dos atletas de maior projeção, dando o seu exemplo de reconversão no final da carreira. Ao criar a Fundação Gol de Letra, dedicada à educação integral de crianças e jovens em comunidades desfavorecidas no Brasil, Raí assumiu a intenção de usar o seu poder de mobilização e comunicação para “participar no movimento rumo a um país socialmente mais justo”. Era, explicou, a melhor forma de dar seguimento aos valores transmitidos por seu pai, e pelo seu irmão mais velho, Sócrates, fundador da democracia corintiana, e um dos maiores jogadores das décadas de 70/80, que Raí evocou como “um dos líderes da redemocratização” do Brasil.
A transformação pela educação é também o objetivo de outra associação que ajudou a lançar, a Atletas pelo Brasil, que junta campeões e ex-campeões de várias modalidades para garantir a massificação do acesso à atividade desportiva, a evolução no desporto escolar e as melhorias no sistema desportivo do país. “O jogo só termina quando todo o mundo vence”, concluiu.
Logo de seguida, os holofotes incidiram em Roberto Carlos, embaixador da Taça das Confederações que, no próximo verão, vai captar as atenções dos adeptos de todo o mundo, e particularmente dos portugueses. Excelente comunicador, o antigo lateral-esquerdo da canarinha evocou, em diálogo com Juan Ignacio Gallardo, diretor do diário Marca, os tempos em que, com um “time de amigos” conquistou, em 1997, um dos primeiros troféus internacionais de um palmarés invulgarmente rico. Com diplomacia, mas também com sinceridade, Roberto Carlos incluiu Portugal entre os favoritos à vitória na prova, e também entre os candidatos a vencer o Mundial 2018: “Tem o Cristiano, o nosso melhor do mundo. Tem o Pepe (que é feio, hein?), tem o Fernando Santos, que é um grande técnico – sou apaixonado pelo seu trabalho e ele sabe disso”, frisou.
Com conhecimento de causa, por lá ter vivido durante três anos, o antigo jogador do Real Madrid garantiu ainda que a Rússia vai assegurar uma grande organização, tanto no ensaio de 2017, como no Mundial, um ano depois: “É um país lindo para se morar, com um povo louco por futebol e com estádios moderníssimos. Podem ter a certeza de que vai ser em grande, os russos não fazem a coisa pela mínima”, sublinhou.
Futebol feminino: rumo ao círculo virtuoso
Tal como no primeiro dia, o futebol feminino voltou a ser tema incontornável, com duas intervenções que lhe foram exclusivamente dedicadas. Na primeira, Barbara Slater, diretora da secção de desporto da BBC, demonstrou a impressionante curva de crescimento na audiência dos torneios de futebol feminino entre 2009 e 2015 (mais de 500%) por contraste com a relativa estagnação dos números dos Mundiais e Europeus masculinos, que já terão atingido o máximo de exposição. “O maior potencial de crescimento no desporto está no futebol feminino. Em 2015, durante o Mundial realizado no Canadá, 48% dos espectadores das nossas transmissões estavam a ver um jogo de mulheres pela primeira vez”, lembrou.
Marcos como os Jogos Olímpicos de 2012, que levaram assistências de 75 e 80 mil espectadores a Wembley para o torneio feminino, ou como a recente transmissão da final feminina da FA Cup, que atraiu 1,6 milhões de espectadores, foram identificados por Slater como sinais de “um círculo virtuoso entre o interesse público, o impacto comercial e o desenvolvimento do profissionalismo” em várias áreas ligadas ao futebol feminino.
No mesmo sentido, Sarai Bareman, diretora da divisão de futebol feminino da FIFA, sublinhou a audiência global de 760 milhões para o último Mundial, em 2015, e o crescimento de 36% em relação às audiências do Mundial anterior como sinais importantes da mudança em curso. “Cerca de 40% dos praticantes federados nas várias modalidades em todo o mundo são mulheres. E, no entanto, o tempo de exposição mediática do desporto feminino é de apenas 4%”, frisou antes de enumerar os alvos estratégia global da FIFA, que envolve 195 das federações filiadas: “Queremos mais competições, mais participação das mulheres dentro e fora do relvado, e duplicar o número de praticantes em 2026, para atingirmos 60 milhões”, concluiu.
Internacionalizar: a palavra de ordem, de Portugal à China
De uma estratégia global de crescimento falou também Lin Xiaohua, vice-presidente da federação chinesa de futebol, que revelou a existência de dois planos apoiados pelo governo para o desenvolvimento do futebol profissional naquele país. O primeiro, a curto prazo, visa a construção, até 2020, de 60 mil campos de futebol – há apenas 10 mil na atualidade – e dois centros de treino nacionais. Em paralelo, a abertura de 20 mil escolas de futebol, para permitir o objetivo de 5 milhões de federados, 70 mil técnicos, 30 mil árbitros e 200 centros de formação. Esse investimento nas raízes acompanha o crescente mediatismo da Liga chinesa, que já movimenta o sexto maior volume de negócios a nível mundial – apesar de a seleção chinesa ser apenas, atualmente, 86ª no ranking masculino da FIFA e 13ª no feminino.
A criação de uma marca global foi, também, o tema da apresentação de Nuno Moura, que antecipou os passos seguintes à vitória portuguesa no Euro 2016 e ao momento em que Portugal “deixou de estar na sombra dos gigantes”. “Agora queremos ter uma série com mais temporadas”, referiu, assumindo a ambição de atingir a chamada geração Z, o público de millenials que já cresceu num universo digital.
Para tal, o diretor de marketing da FPF (“que é mais do que uma Federação”) definiu quatro prioridades estratégicas: criação de identidade e marca dentro do campo, relevância cultural, expansão geográfica rumo aos mercados emergentes e ofensiva digital. O desafio que o entusiasma é, em resumo, “fazer o mundo apaixonar-se por Portugal” num tempo em que há falta de heróis.
Internacionalizar foi, também, palavra utilizada por Pedro Proença, presidente da Liga Portugal, ao referir o plano estratégico para 2019-2023. Depois de apresentar as três competições organizadas por aquele organismo, Proença assumiu a ambição de centralizar a exploração comercial de forma a gerar mais receitas e, gradualmente, aproximar a realidade portuguesa da existente nas Ligas top-5: “Temos tudo para fazer bem, mas ainda estamos a meio caminho”, concluiu.
Media, tecnologia e emoção
Nas restantes intervenções do dia, Nuno Santos, da Story Lab, tentou deixar pistas para o futuro mediático do futebol. Lembrando que as receitas televisivas multiplicaram-se por sete nos últimos 20 anos, deu como adquirido o aparecimento de novos conteúdos exclusivos e de novos players no setor, tanto no que diz respeito a Ligas emergentes como a operadores de telecomunicação. “A entrada do Facebook no negócio dos conteúdos relacionados com o futebol é inevitável”, afirmou.
Uma visão que coincide com a deixada por Ajaz Ahmed, fundador da agência de criatividade AKQA, que sublinhou a necessidade de adaptar o futebol a um tempo em que “é necessária uma cultura de relações, mais do que de transacções. A maior fonte de mudança é a imaginação, mais do que a tecnologia”, frisou, sublinhando a necessidade de criar um impacto emocional no consumidor.
A ligação entre tecnologia e emoção foi particularmente bem abordada por Daniel Chao, CEO da empresa Halo Neuroscience, dedicada a tornar a tecnologia de estimulação neurológica mais acessível ao grande público – e, em particular, dado o âmbito da conferência – aplicável ao treino de desportistas. O dispositivo por si criado, com a forma de headphones, propõe-se estimular antes do treino, com impulsos elétricos, durante 20 minutos, a área do cérebro mais indicada para acelerar a aprendizagem motora. O dispositivo que pode servir para complementar a visão de Lou Jacobs, co-CEO da Delaware North que, com base no estudo intitulado “O futuro do desporto”, antecipou o cada vez mais crescente recurso à realidade virtual e realidade aumentada, tanto por parte dos adeptos como dos praticantes e técnicos, e deixou uma aposta convicta na crescente popularização dos E-Games como forma alternativa de desporto cada vez mais presente na sociedade.